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A DESPERTADA

A Despertada
por Ana Lúcia Santana

Nine finalmente despertou. Olhou a sua volta. Os outros ainda dormiam. Algo gritava dentro de si que ela tinha de sair dali o mais rápido possível, antes que acordassem. Não saberia dizer o que, mas na mesma hora alongou seu corpo e tentou se orientar. Experimentou as asas, mas ainda estavam coladas as suas costas. Talvez levassem algum tempo até voltar ao normal.
Estava em um lugar apavorante, deitada no que parecia ser uma estranha cova. A mais completa escuridão a envolvia. O ar gélido ameaçava congelar seu corpo. Tateando às cegas, arrepiou-se ao tocar o que aparentavam ser teias de aranha. Torceu para que estivessem abandonadas.
De repente, encontrou uma saliência, reuniu suas derradeiras energias e a empurrou. Um fio de luz se derramou sobre o misterioso aposento. Esforçando-se ainda mais, empurrou a laje que cobria a misteriosa cavidade e confirmou suas suspeitas. Encontrava-se decididamente sob a terra. O sangue congelou nas veias de Nine ao imaginar os seres sinistros que povoariam este lugar. Criando coragem, olhou a sua volta. Viu, então, vários seres sombrios, ainda adormecidos. 
De súbito, flashes iluminaram sua mente. Pouco a pouco suas memórias voltavam. Sombras espalhavam-se pelo céu. Fadas, gnomos, duendes e outros povos mágicos sufocavam. Ela também respirava com dificuldade. Perdera a consciência e agora despertava neste mundo estranho.
Quando finalmente deixou a misteriosa sepultura, parou por um instante e se concentrou; a sua esquerda viu, enfim, um portão que parecia indicar a saída. No caminho, examinou melhor o lugar que lhe provocava arrepios. Seu coração quase parou quando ela se lembrou das velhas histórias de seu povo. A Terra dos Mortos... Pela descrição de seus ancestrais, só podia ser o derradeiro refúgio dos humanos.
 Ela voltou a acelerar os passos. Não sabia como fora parar ali, afinal, ainda estava viva. Então, era melhor sair logo dali. Quando estava prestes a atingir o umbral, Nine estacou. Avistou alguém tentando se erguer, mal se sustentando sobre os próprios pés.
Ela se escondeu atrás de uma sepultura. Ele finalmente se equilibrou.  O medo a congelou. Havia sangue nos olhos dele. Viu o ser bizarro observar as próprias mãos, apalpar o corpo, buscar seu reflexo em uma superfície espelhada e recuar. Logo em seguida, ela o ouviu gritar, com uma expressão de horror estampada no rosto. Nine tremeu.
Parecia que nem ele mesmo sabia quem era. O ser misterioso abriu a boca, como que tentando emitir algum som, mas só conseguiu rugir; Nine, de longe, tentou observar seus dentes. Não era um vampiro. A criatura farejou o ar, como se sentisse sua presença. Sentiria o perfume do mel no sangue de Nine? Esse detalhe marcava o povo das fadas, que há milênios polinizava as flores, em parceria com as abelhas. Mas, ali, naquele universo sinistro, poderia ser perigoso, impedindo-a de se ocultar dos prováveis inimigos.
Naquele mesmo instante, outro ser, lentamente, tentava atravessar o limiar do cemitério. Aparentemente a criatura captou sua presença e saltou como um raio na direção dele. Ela teve que se conter ante a cena pavorosa que se desenrolou diante de seus olhos.
Em um piscar de olhos o elfo jazia sem a cabeça. Um pensamento pulsava na mente de Nine. Um zumbi! A criatura olhava para suas mãos sujas de sangue, para a vítima, e balançava a cabeça, soluçando.
Nine precisava sair dali; deu-se conta de que ele não resistiria ao aroma do seu sangue. Fechou os olhos, respirou fundo. Recordou-se da expressão de horror da criatura, instantes atrás, ao perceber o ato que cometera. Ela abriu os olhos novamente e partiu na direção do monstro. Assim que seus olhos se encontraram, ele ficou hipnotizado.
- Você é... uma.... fada?
Sem entender como, ela sorriu. A criatura caiu de joelhos diante dela. Nine sentiu sua aura brilhar e a própria altura se expandir, assim como seu poder. Ele a olhava, fascinado. De repente, Nine caiu em si. O que estava fazendo?
Então, abriu suas asas e voou até a floresta mais próxima. Ao se ver em segurança, pousou sobre a grama, inquieta. O que acontecia com ela? Não conseguia tirar a imagem do jovem zumbi de sua mente. Ela tinha o poder da cura. Percebera, nas atitudes dele, que não desejava se deixar dominar pelo novo ‘eu’. Ia voltar e encontrá-lo de qualquer maneira.
Enquanto isso, na terra dos mortos, Zero tentava compreender o que acontecera. Primeiro, o clarão que consumira seu corpo e queimara sua carne. Depois, aquela imagem terrível de si mesmo e a fome que devorava suas entranhas. Em seguida, o aroma de mel e carne fresca. Quando dera por si, já se deliciava com as vísceras daquele desconhecido. Então, a fada invadiu seu pesadelo e o cegou com sua luz. Sentiu, entorpecido, o perfume do néctar que emanava da criatura alada, mas algo mais forte nele o impediu de dar vazão aos seus instintos vorazes.
Confuso, piscou mais uma vez. Ela tinha desaparecido. Uma fúria estranha tomou conta dele, misto da vontade de revê-la e de consumir aquela carne que rescendia a mel.  Sua boca salivou. Tinha que encontrá-la, mas que aberração era essa em que ele se transformara? Só um ser abominável nutriria o desejo de destruir alguém tão fascinante como a fada. Não havia outra saída, senão aceitar sua natureza? Mesmo assim, estava determinado. Precisava mais uma vez sentir a magia que emanava daquela criatura.
Enquanto isso, Nine se aproximava. Hesitou diante da entrada. Reuniu suas forças. Um aroma pungente atingiu seu olfato. Sabia que era ele. Ela se preparava para entrar quando ouviu uma forte vibração, grave e contínua. Deteve-se novamente, a tentar decifrá-la.
A poucos metros dali, Zero sentiu uma fragrância de mel dominá-lo. Ele cambaleou. Ela estava ali. Bastava dar alguns passos e poderia finalmente sentir o gosto do sangue dela ou, quem sabe, dos seus lábios. Ele balançou a cabeça, aturdido. De repente, um zumbido intenso o atordoou. Olhou pra trás. Uma multidão de criaturas semelhantes a ele avançava. O que seria da fada? Sem hesitar, avançou em direção ao portão, na direção de onde vinha o aroma de mel.
Nine tentava identificar a origem daquele som estranho. Só assim saberia se era seguro prosseguir. Então, respirando fundo, expandiu sua energia e fez surgir uma tela diante de si. Ela estremeceu. A superfície espelhada reproduzia o terrível pesadelo que se aproximava. Precisava fugir, mas e o zumbi que viera salvar?
De súbito uma mão fria agarrou seu pulso e a arrastou na direção da mesma floresta de onde partira. Nine arriscou um olhar de relance. Era ele. Soltando o ar preso em sua garganta, ela o seguiu sem qualquer dúvida. Quando finalmente se abrigaram sob um carvalho, ela fixou seu olhar no zumbi. Ele a soltou e recuou, tentando ficar o mais distante possível.
- Por que voltava? – grunhiu o zumbi. – Sentiu prazer em me torturar com seu perfume? Não conhece minha natureza monstruosa?
Por instantes uma raiva inesperada invadiu o coração de Nine. Teve o ímpeto de desistir e abandonar a criatura à própria sorte. Na mesma hora, ouviu passos furtivos.
- Estou tentando ajudar; sei que você é diferente dos outros. Mas talvez esteja perdendo meu tempo – a voz dela se elevava, revelando sua crescente irritação.
- Sou um monstro como eles, e posso lhe devorar. – Ele deu um passo na direção de Nine; ela recuou.
- Por que me agride? - Posso lhe curar. Sei que algo em você resiste à transformação.
Nesse momento, Nine voltou a ouvir o zumbido agudo. Talvez tivessem seguido o rastro do mel em suas veias.
- Por que desejaria me curar? – um ar de desconfiança atravessava o olhar dele.
Ela deu de ombros. O ruído se tornou mais intenso.
- Sou um monstro – gritou ele. – Não pode fazer nada por mim. Vá embora!
- Não vou partir sem tentar – Nine abaixou a voz e virou-se. Os outros estavam chegando. A criatura se aproximou dela, parecendo inebriado pelo aroma de seu sangue. Sem saber explicar, ela também se sentia atraída pelo odor pungente dele. Seus lábios quase se tocaram. No último instante, porém, o zumbi deu alguns passos para trás, meneando a cabeça.
- Os deuses devem estar zombando de mim. O que uma fada fazia na terra dos mortos, e por que agora quer me ajudar?
- Acordei ali, naquela cova assustadora, depois tentei fugir. Foi quando lhe encontrei.
O ruído estava mais alto. O cheiro, insuportável.
- Você pode mesmo me curar? – perguntou o zumbi.
- Curar é meu dom. Mas resgatar o humano em um zumbi... é algo muito maior.
Ele a interrompeu.
- Eles estão chegando – disse ele. – Salve sua vida.
- Se pudesse achar um dos Mentores de meu povo, talvez tivéssemos uma chance...
- Achar quem? – disse Zero.
- Agora não tenho tempo de explicar – Nine teve uma ideia repentina. – Pode se unir aos outros zumbis, fingir que é como eles, enquanto tento encontrar um dos Mentores?
Ele gargalhou.
- Eu sou como eles, fada. Vá, seja sensata e não tente voltar.
- Meu nome é Nine, e eu vou te achar.
- Meu nome é Zero, e você é maluca – disse ele, pouco antes de Nine abrir as asas e partir.
Nine olhou para trás e viu os zumbis cercarem Zero. Torceu para que ele preservasse um raio de humanidade até seu retorno. Sentia-se irremediavelmente ligada a ele.
Zero não conseguia compreender a algazarra a sua volta, mas se via refletido naqueles monstros. Nine estava errada, ele também era um zumbi. Ao pensar nela, na mínima possibilidade de machucá-la, sentiu uma repugnância crescer em seu estômago. Decidiu, então, ganhar tempo para Nine.
- Vão ter que achar outra vítima. Não sobrou nada da fada saborosa – riu, debochado.
O que parecia ser o líder o pegou pela garganta e o atirou contra o carvalho. O mundo girou a sua volta. Mas nada importava, a não ser salvar Nine. Ouviu as risadas sinistras dos zumbis. Seus olhos se fecharam. Um líquido viscoso escorreu em seu pescoço.
Enquanto isso, Nine sobrevoava a floresta à procura de uma dobra no tempo que a levasse de volta para sua dimensão, quando  viu uma chama violeta brilhando sob um pinheiro. Sem hesitar, voou até lá. Aproximou-se da chama, mas o brilho estava se apagando. Ela ainda tentou reacender a labareda, em vão. Então, do nada, um elfo saiu do pinheiro e a olhou de alto a baixo.
- Você é uma despertada? – disse.
– Como assim? – Nine recuou, lívida. – O que é ser uma despertada?
 Ele também recuou.
- Não pode mais voltar à nossa dimensão. Você está contaminada.
- O que!?
- Lembra-se das histórias sobre a Lua Negra? – O coração de Nine encolheu. Ela não teve um bom pressentimento. – Pois bem, ela enfim se alinhou com a Terra. E, como nossos profetas previam, abriu-se um portal entre o universo dos homens e nossa dimensão.
- Não acredito... – balbuciou Nine, lembrando-se da antiga maldição que os Mentores temiam.
- Infelizmente é verdade. Espectros das trevas aproveitaram-se desse alinhamento e atingiram os humanos, transformando-os em zumbis. Algumas criaturas mágicas também receberam o impacto dos raios negros, mas como a magia nos protege, o vírus ficou latente.
- Eu... tenho o vírus?
- Sim – ele abaixou a cabeça -, e nem nossos Mentores sabem se, um dia, ele pode deixar de hibernar e...
- Posso me transformar em um zumbi? – ela perguntou, e teve o silêncio como resposta.
Após uma pausa, ele prosseguiu.
- Os Mentores sabiam que você e outros de nós despertariam e, talvez, pudessem acabar com nossa dimensão, contagiando os povos mágicos. Por isso, conduziram vocês à Terra dos Mortos, antes que o portal se fechasse.
A cabeça de Nine rodava. Não podia ser! Mas, ao mesmo tempo, isto explicava tudo.
- Não há... uma saída?
- Como disse, nada sabemos sobre seu futuro. Sinto muito. Tenho que ir. O Portal está se fechando! – O elfo correu na direção da passagem e desapareceu.
Então, ela também estava condenada...
Não havia mais nada que ela pudesse fazer. Assim, voou de volta. Ao ver Zero inconsciente, correu até ele e lançou-lhe raios de luz violeta. Zero piscou, abriu os olhos e ergueu-se, cambaleante. Virou-se para Nine, com a expressão como que transtornada.
- Eles vão voltar. Pensei que lhe salvaria. Disse que tinha lhe devorado, mas não sei se acreditaram.
- Você fez isso? – surpreendeu-se Nine.
- Sim – murmurou ele. - Se voltou para me curar, por favor, tem que ser agora. Não suporto mais o aroma de seu sangue. Se não agir rápido, vou devorá-la.
Nine sentiu sua pulsação aumentar.
- Por que está tentando salvar minha vida? – ela perguntou, aproximando-se, sem medo.
- Meu coração já não bate mais, e não respiro como antes. Mas você tocou alguma parte de mim que estava se perdendo. – Zero respondeu, com um brilho quase humano no olhar.
Depois, ele olhou para trás.
– Rápido. Eles estão voltando. Você tem que agir.
Nine mal respirava. Tinha que dar certo. Lembrou-se que, antes do alinhamento da Lua Negra, seu mentor havia lhe alertado sobre seus poderes de cura. Eles poderiam consumi-la. Mas agora não podia mais contar com o tempo para desenvolver seus dons. A multidão de zumbis chegava cada vez mais perto.
Concentrou-se intensamente. Respirou fundo, piscou e então lançou um raio magnético sobre Zero. Para seu desespero, o zumbi caiu, fulminado.
Lágrimas brotaram dos olhos de Nine. O odor dos zumbis já chegava às suas narinas. Um torpor se espalhou sobre o corpo dela. Seus olhos ficaram nublados. Seu mentor estava certo... O chão começou a se aproximar de seu corpo. Ela sentia o solo vibrar com os passos das criaturas. Cada vez mais próximos. Ela perdeu as forças. Os zumbis a cercaram. Nine adormeceu novamente, ao lado de seu eleito, após um último pensamento. 
“Quem sabe um dia?”



Esse conto faz parte de um livro meu de contos, A Garota da Luz Dourada, da Editora Scenarium Plural, da série E.X.E.M.P.L.O.S de Contos. 

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