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O BURACO

por V. R. JANSON 

A pequena cidade de Black Rocks é cheia de histórias sobre acontecimentos, de certo modo, inexplicáveis. Todo morador tem pelo menos uma para contar, seja no período de sua infância, idade adulta ou simplesmente uma que ouviu de seus pais ou avós. O curioso é que estes fatos são tratados como simples acontecimentos, como a chuva ou uma colisão na esquina.

Eles surgem, recebem uma certa atenção e são aceitos como parte da cidade, juntamente com a data de sua fundação ou a inauguração da primeira escola pública. A população convive harmonicamente com as estranhezas, integram em suas vidas e seguem em frente como se fosse tudo perfeitamente normal. Esta é uma destas histórias.

Milou Gartia, tinha uma rotina bem definida em todos os dias de sua vida - acordava por volta de cinco da manhã, arrastava seu imenso corpo sustentado por suas duas pernas inchadas e varicosas coberto pelo surrado vestido com estampas de flores até o banheiro e lá ficava por vinte minutos. Caminhava pesadamente até a cozinha, punha a água do café para ferver e com a mão na cintura, observando a panela, começava a acordar. Sua primeira atitude era gritar o nome de Paul, seu marido, a todo pulmão. O traste, como o chamava para si mesma e para quem quisesse ouvir, dormia o sono dos justos, ou melhor, o sono pesado da ressaca. Alcoólatra há mais de vinte anos, também tinha sua rotina - acordava com os gritos de sua esposa, tomava seu café, esperava o bar da esquina abrir e para lá ia. Bebia até as oito da noite, voltava pra casa, comia algo, se sua esposa tivesse deixado sobrar, e caía na cama para dormir pesadamente até o dia seguinte e recomeçava a rotina.

Depois de se certificar que seus gritos haviam surtido efeito, abria a janela da cozinha que dava para a rua. Como era uma casa alta, a janela era um ótimo ponto de observação da vida alheia, uma visão panorâmica dos arredores. Dali Milou via à sua esquerda, na esquina, o bar Adega - nome propício para um estabelecimento daquele tipo, mas que só enganava os desavisados, pois tinha esse nome devido ao seu proprietário, Adegar, e como o letreiro perdeu o R a confusão com o nome acabou tendo um certo charme. Ao lado do bar, situava-se a mercearia Tá na Mão, de propriedade do casal Smith, John e Martha, era o principal foco de observações de Milou - "Ah, olha só... a Cecy está de volta... que roupa indecente... ela acha que está aonde? Em um desfile de moda em Paris? Precisa se vestir desse modo para andar em Black Rocks? Num bastava um simples vestido? Precisa estar sempre se mostrando e mostrando tudo?" Dizia para Paul, o qual geralmente estava sentado à mesa da cozinha, mas com a cabeça muito longe dali. Se por acaso viesse a prestar atenção a algum dos comentários sobre a vida alheia de sua esposa, o que pensaria seria algo como "ela usa um vestido desses porque ela cabe nele e se ela mostra algo a mais é porquê é bonito e não uma agressão aos nossos olhos, ao contrário deste seu corpinho..."

Na outra esquina, à direita, ficava a padaria Pão Nosso e em frente desta, do mesmo lado da casa de Milou, a serraria São Francisco, operada pelo experiente Mestre Johnny, um faz tudo que se deu bem construindo e fazendo manutenção de portões e afins.

Certo dia, ainda olhando perdida para a água de seu café, Milou ouviu um baque seco logo abaixo de sua janela. Alguém soltou também uma interjeição de espanto e ela logo reconheceu quem poderia ser, apesar de a janela ainda estar fechada. Abriu a janela num movimento brusco e as duas portas bateram nas laterais da casa fazendo um barulho ainda maior, assustando o entregador da padaria, que apesar de ser na esquina, Milou tinha dificuldades e preguiça de se deslocar até lá para pegar os seus pães de todos os dias, pedindo então que fossem entregues em sua casa. Sem sequer parar para ver o que tinha acontecido, já soltou os cachorros em cima do rapaz:

— Eu não quero nem ver se você deixou meus pães caírem de novo seu incompetente! Mark, o entregador, era um rapaz franzino com cara de quem nunca sabia direito o que estava fazendo. Estava se levantando do que parecia ter sido uma queda, mas olhava fixamente para o chão, mais precisamente na rua em frente a casa de Milou. Parecia não estar nem ouvindo o que a mulher gritava. Estava com o olhar fixo e assustado para o local de sua queda.
— Responda rapaz! O que você aprontou? Cadê meus pães?
O rapaz ainda não demostrava estar ouvindo.
— Mark! MARK!!!!
Finalmente Mark saiu do transe e olhou para cima, onde da janela a mulher gritava seu nome.
— O quê?
A mulher não tinha a mínima paciência com a lerdeza do rapaz. Não sabia se gritava de novo ou se descia até a calçada para chacoalhar o rapaz.
— O quê você está fazendo aí parado? Cadê meus pães?
— Caíram...
— Eu sabia! Você derrubou meus pães de novo! Não vou perdoar desta vez! Vou agora mesmo ligar na padaria e fazer uma reclamação de sua conduta!
Mark não fez a mínima menção de querer responder. Voltou a olhar para a rua. Milou viu algo que a fez gelar - bem onde estava o entregador, em frente a sua casa, um imenso buraco, do tamanho de um carro, abria-se na rua. Era incrivelmente negro, mal via-se suas bordas, elas confundiam-se com o asfalto.
— Mark?
— Sim?
— Isso que estou vendo é um buraco?
— É. E minha bicicleta está lá dentro. E os pães da senhora... — O rapaz olhava desconsolado para a cratera. Sua bicicleta era sua vida. Ela o levava e o trazia. Ela o ajudava em seu trabalho. Ela fora comprada com seu suor de entregador - iniciou com uma lata velha que o dono da padaria reformou para o garoto começar a ajudar nas entregas e, assim que pode, comprou a sua. Era sua companheira e agora estava perdida naquele monstro negro.
— Paul! PAAAAAAUULLLL!
— Meus Deus! O que foi?? — Respondeu Paul correndo em direção à esposa que gritava da janela sem sequer tirar os olhos da rua. Teve que deixar seu compromisso no banheiro pela metade.
— Abriu um buraco enorme aqui na rua! Ele vai engolir nossa casa! É enorme!
— Como assim?
— Como assim o quê?
— Como assim tem um buraco enorme aí na rua que vai engolir nossa casa?
— Acelera sua cabeça homem! É o que acabei de dizer! Venha ver!
Milou estava sentada no baú que guardava seu enxoval de cozinha, este ficava bem embaixo da janela e era o único móvel que aguentaria o peso da mulher. Mesmo este reforçado assento já estava mostrando sinais de fadiga sob o peso de sua usuária. Quando Milou se sentava, ele estalava e rangia, mas ainda resistia bravamente. Paul chegou e se posicionou espremendo-se ao seu lado, amparado pelo batente da janela e olhou para a rua.
— Puta que pariu! O que este cara fez?
— Ele teve a pachorra de derrubar meus pães dentro daquele buraco!
— Mas foi ele que fez o buraco?
— Não, traste! Ele derrubou meus pães dentro dele! Já é a segunda vez este ano que ele
derruba nossos pães!
— Eu não entendi o estresse então... O problema é o pão ou o buraco?
— Tudo! Fiquei sem meus pães e este negócio aí na rua está muito perto de nossa casa!
— Entendi...
Milou vendo que o marido estava com a sua característica cara de “e daí?“ empurrou-o em
direção da porta da rua dizendo:
— Desça lá Paul! Tome alguma providência!
— O que posso fazer? Ir até a esquina e trazer pães e jogar terra no buraco? — Disse
Paul enquanto tentava se equilibrar depois do solavanco do empurrão que recebeu de sua
esposa.
— Deixe de ser idiota e tome uma atitude de homem! Resolva isso! “Vou resolver. Vou jogar você no buraco. Depois jogar terra em cima, ir para o bar, tomar todas e comer todo o pão que eu comprar sozinho. Com requeijão. Sim, com requeijão, e sem a marca dos seus dedos roliços nas bordas do frasco." Pensou Paul enquanto abria a porta da rua e descia os degraus que o levavam à calçada.
— Nossa não dá nem para ver o fundo! — Disse Paul ao chegar ao lado do entregador, o
qual continuava com o olhar perdido em direção ao buraco.
— Bullet!
— Quê?
— Bullet. Minha bicicleta. Está lá dentro.
— Como você conseguiu sair da bicicleta enquanto vocês caíam?
— Eu saí antes.
— E porquê a deixou cair aí dentro? A qual velocidade você vinha?
— Não foi nada disso. — Mark finalmente tirou os olhos do buraco e olhou para Paul Gartia. — Eu chego super cedo, o senhor sabe, a Sra. Milou gosta de seus pães antes das sete...
— Paul apenas torceu o canto da boca em concordância. — Então... Eram mais ou menos umas seis e meia quando eu cheguei aqui. Logo de cara eu vi o buraco. Apesar de ser difícil de ver este negócio a uma certa distância, eu sou muito cuidadoso com minha Bullet. (Era...) Bom, assim que vi que tinha algo diferente por aqui, parei de pedalar e parei na beirada ali. Coloquei a Bullet no descanso e desmontei para ver o que tinha acontecido. Fiz a volta toda tentando entender o que tinha causado tamanha erosão. Este troço é de uma negritude só. Não consegui, e ainda não consigo, ver o fundo, portanto fiquei aqui parado, exatamente aqui. — Mark apontava para o lugar onde estava ao lado de Paul. — Fiquei apenas olhando para este buraco, olhando para sua escuridão, quando de repente, minha Bullet caiu dentro dele. Simplesmente assim. Ela estava a pelo menos uns dois metros de distância de sua borda, eu não a deixaria perto de qualquer perigo, pode apostar! Este buraco simplesmente a engoliu.... E os pães da sua esposa estavam em sua cesta...
— O descanso devia estar bambo...
— Nunca! O senhor não sabe o quanto eu cuido da minha Bullet. Nem um terremoto a derrubaria! Este buraco a engoliu!
— Ah! Só me faltava essa! Além de incompetente é mentiroso! — Gritou Milou da sua janela. A sua audição era uma coisa digna de nota. Principalmente referente à assuntos alheios.
— Este moleque fez a merda toda e ainda inventa uma história sem pé nem cabeça sobre o assunto! Ele mais uma vez derrubou meu café da manhã e tenta angariar nossa compaixão por ter perdido seu meio de transporte do século passado!
— Milou!
— Deixe de ser besta ao menos uma vez na sua vida, Paul!
— O quê o pão pode de ter de tão importante?
— A questão não é o pão. E sim, a situação. Rimou, mas não tem graça nenhuma. Preste atenção, pelo menos agora que não está trançando as pernas: Não podemos levar nossas vidas passando a mão na cabeça de incompetentes. A incompetência tem que ser duramente punida. Sempre.
— Qual foi a incompetência aqui? — Perguntou Paul trocando olhares para sua esposa no
alto da janela e para com o entregador que continuava contemplando o buraco.
— Ai... Você não está vendo que além de arrasar o nosso café da manhã, ainda perdeu
sua amada bicicleta? Incompetência pura!
— Opa! A senhora está sendo injusta agora! — Disse Mark, pela primeira elevando seu
olhar para Milou, no pedestal de sua janela. — Eu nunca, em hipótese nenhuma, deixaria minha Bullet displicentemente próxima a um buraco como este. A senhora me ofende e ofende a ela...
— Só me faltava essa! O entregador da padaria é um freak adorador de bicicletas! Só falta
dizer que sua primeira vez foi com ela... Foi? Frente à uma frase tão "Milou Gartia", tanto Paul, quanto Mark apenas ficaram a encarando.
— Parem de me olhar com esta cara de abestalhados! Resolvam isso aí! Ainda estou sem
meu café da manhã, e você sabe, traste, que fico fraca das ideias quando não me alimento direito! "Não se alimenta direito? Esta massa de banhas poderia passar meses sem comer que não ficaria sem energia..." — Pensou Paul.
No instante improvável que Paul Gartia teria a coragem necessária para responder à sua esposa, John Smith, proprietário da mercearia "Tá na Mão", o salvou de ser dilacerado verbalmente pela cônjuge.
— Êita! O que aprontou por aqui, Paul? Tá querendo fazer o metrô antes do prefeito? John tinha razões de sobra para ser rude com Paul Gartia. Quando este resolvia dar "passada na mercearia" quando havia terminado seu turno no bar – o qual havia começado pelo meio dia e terminado ao anoitecer - muitos clientes eram molestados pelas brincadeiras indecentes de Paul e deixavam suas compras por fazer e se retiravam do estabelecimento, causando uma ira contida de seus proprietários, descontadas em breves arroubos de ira como este.
— Nada disso! Eu não tenho nada a ver com esta coisa! — Paul, ao responder John, adotara uma postura de uma criança que fora levada à presença do diretor de sua escola por ter feito uma traquinagem além do tolerável. — Foi ele! — Disse Paul apontando para Mark.
— Ele? — Perguntou John apontando a cabeça para o entregador da padaria.
— Eu? — Perguntou Mark injuriado.
— Sim! — Bradou Milou. Ainda onipresente, do alto de sua janela para a vida alheia.
— Deixe disso Milou! Deixe o rapaz em paz. Rimou, mas não tem graça nenhuma. — Disse Paul sabendo que sua gracinha iria causar semanas de repressão em casa. Ele não ligava
mais, havia muito tempo.
— Afinal, quem abriu esta cratera aqui? — Perguntou John.
— Ela já tava aqui quando eu cheguei. Depois de um tempo ela engoliu minha bicicleta. —
Explicou Mark para John, ignorando o olhar de ira de Milou.
— Eu não garanto que isso seja verdade. — Disse Paul.
John, devido ao histórico de Paul, resolveu ignorar o comentário.
— Eu posso jurar! Bullet estava bem longe da beirada disso aí. — Disse Mark apontando
efusivamente para o buraco.
— E ela caiu magicamente dentro dele! — Disse Milou com ironia lá do alto.
— Nada disso! Eu nunca a deixaria! Este monstro que a pegou! — Disse Mark.
— Opa! Podemos dar uma pausa por aqui, já que a razão resolveu dar uma volta... —  Disse John.
— Opa digo eu! O senhor está querendo dizer que o que eu estou dizendo não condiz com
a realidade? É isso?
— Sinto lhe dizer que sim.
— O senhor está a me ofender!
— Que lindo! Você trabalhou com telemarketing?
— Não o suficiente para te vender algo que prestasse.
— As duas meninas aí poderiam parar de frescura e resolver o problema? — Gritou Milou.
— Vou descer. — Disse Mark.
— Descer para onde? — Perguntou John.
— Oras, para dentro do buraco... — Respondeu Mark.
— Você vai entrar nessa escuridão toda? — Perguntou Paul.
— Claro! Não vou deixar Bullet lá sozinha!
— Ah meu Deus! Só me faltava essa! O cara realmente acha que sua bicicleta é alguém!
— Disse Milou.
— Eu não acho que ela seja alguém. Eu apenas acho que ela tem um alto valor para mim.

Eu tive muito trabalho para compra-la. A senhora tem noção de quantas vezes eu trouxe pão para a senhora? E acha que foi só para a senhora? Para seu governo não foi. Metade de Black Rocks consome os pães da Pão Nosso e sou eu quem entrega, ninguém mais. Portanto esta bicicleta não é só uma bicicleta, ela significa horas e horas de esforço físico e também mental. — O entregador fez uma pausa. — Por quê mental? — Continuou se divertindo por ter feito sua cliente mais ranheta ficar sem palavras. 
— Porquê não é fácil sair de casa às quatro da matina, chegar no local de trabalho onde a única pessoa que está por lá não está com a mínima vontade de trabalhar. Eu não sei se todos os padeiros são assim, mas geralmente lá pelas cinco da manhã eles têm um mal humor que perde de longe para a menopausa da minha mãe. Depois disso te olham como se sua presença fosse a maior ofensa que poderiam ter em suas vidas, como se eu fosse a assinatura final de seu cotidiano indesejado, como se eu fosse o mensageiro das piores notícias de suas vidas. E olhe que apenas chego e espero a primeira leva dos pães ficarem prontas. O cara está lá desde, sei lá... três da manhã? Bom, resumindo, eu tenho que receber diariamente a carga negativa daquele cidadão que não sei por quê trabalha com isso se lhe causa tanto mal-humor. Isso agrega muito o valor à minha amada bicicleta que facilita muito minha vida.
Principalmente por ser nova, leve e muito bonita. Entenderam? — Muito edificador saber que você, numa idade tão pequena, consegue ter conceitos tão nobres, mas ainda acho uma estupidez sem limites querer descer nesse buraco. Não conseguimos ver de onde vem e para onde vai... — Disse John.
— Eu iria... — Disse Paul apenas para ter uma opinião contrária à John.
— Ah iria? Eu duvido muito... — Contestou Milou com um tom de escárnio. Paul apenas se
manteve em silêncio. Ignorando a conversa paralela do casal, John continuou:
— Não faça esta besteira. Nem conseguimos ver as margens. Dê uma olhada. Nunca vi um buraco como esse. Ele é totalmente escuridão. Nem na borda conseguimos ver algo, é como se toda a luz que incide sobre ele fosse absorvida. Mark ficou alguns momentos olhando para o buraco. Teve alguns conflitos momentâneos em sua cabeça mas logo os colocou de lado. Tinha que recuperar seu meio de transporte, custasse o que custasse.
— Acho que vou precisar de uma corda... — Disse por fim Mark.
— Eu até poderia conseguir uma para você, mas não vou colaborar com sua loucura. —
Disse John.
— Eu arranjo. — Disse Paul e partiu em direção à sua casa.
— Não faça isso. Não desça dentro disso aí. Não sabemos o que causou tamanha erosão. O Paul vai te dar o que quer apenas para me contrariar. É perigoso. Vamos chamar os bombeiros.
— Disse John.
— Não precisa Sr. Smith. Eu consigo pegar minha Bullet rapidinho. Depois a gente vê o que a prefeitura vai fazer à respeito ou talvez o departamento de agua e esgoto...
— Ainda acho que você não deveria...
— Deixe o incompetente fazer o que tem que ser feito! Quem sabe ele ainda recupera meus pães! — Gritou Milou.
Tanto John quanto Mark tiveram a mesma impressão sobre esta frase. A mulher não tinha a mínima noção de como a vida funcionava. Não era possível uma pessoa com a sanidade mental em dia dizer uma coisa daquela. Apenas se restringiram o que todos daquela região faziam frente aos comentários absurdos de Milou - ignoraram. Neste meio tempo, Paul chegou com a corda. Era grossa o suficiente para aguentar uma pessoa bem pesada.
— Taí. Acho que aguenta seu peso. — Paul se abaixou para falar ao pé do ouvido de Mark: — Aguentou Milou quando ela entalou no banheiro. Aguenta qualquer coisa...
Apesar de John estar estar um pouco distante de Paul e Mark, conseguiu ouvir a frase de Paul, resolveu juntamente com Mark não fazer nenhum tipo de comentário a respeito, pois não era maluco de querer ver a Dona Milou discorrer suas ideias sobre este assunto em particular.
— É deve dar... — Disse Mark ao pegar a corda das mãos de Paul. — Onde posso amarrar?
— Acho que no poste ali deve resolver. — Disse John desistindo de ir contra a convicção
do jovem entregador. Mark deu a volta no poste com a corda e depois a passou por sua cintura, deixando uma parte para controlar o comprimento, como o arranjo de uma corda para se fazer rapel. Vendo a cara de dúvida de seus dois companheiros de situação, Mark esclareceu:
— Tive umas aulas de rapel no Tiro De Guerra... Coisa simples...
— Ainda não estou confortável com a situação. Acho seriamente que o pessoal do Corpo
de Bombeiros deveriam ser chamados. — Disse John.
— Nem pensar. Consigo pegar minha Bullet e depois vemos o que a prefeitura vai fazer a
respeito.
— Eu apoio. — Disse Paul dando um sorrisinho desafiador para John.
— Vai logo! Pega estas merdas de pães ou vá buscar outros para mim! Estou com fome!
Ainda não comi nada desde que acordei! — Gritou Milou.
Ignorando completamente o que sua mais indesejável cliente acabara de falar, Mark se deteve a olhar paro onde pretendia se aventurar. O buraco era de uma negritude ímpar. Logo nas suas bordas a cor negra de sua superfície tomava conta. Era como se toda a luz fosse totalmente absorvida. Nada saía. Mas para Mark nada disso importava. Sua bicicleta, Bullet, merecia seus esforços. Não seria um mero buraco que o separaria dela. Verificou o ajuste da corda em volta do seu quadril e passando por de baixo de sua pelve. Respirou fundo e se aproximou da borda do buraco. Era hora de se aventurar no desconhecido. 
— O senhor me ajuda aqui? — Disse Mark pra John. Havia solenemente ignorado Paul,
pois com sua compleição física era óbvio que não conseguiria sustentar um peso maior do que um saco de feijão de um quilo.
— Rapaz, vamos chamar os profissionais. — Tentou argumentar John com o obstinado entregador.
— Não preciso de ninguém para retirar minha bicicleta de um simples buraco.
Mark se posicionou na beira do buraco, conferiu mais uma vez a tensão da corda, quando ia fazer o sinal que iria começar a descer, Paul soltou um gemido de exclamação e se jogou para trás, como se algo de dentro do buraco tivesse tentado agarra-lo.
— O que foi? — Perguntou John. — Você se desequilibrou?
— Eu não sei. Eu não estava me mexendo. De repente, foi como se eu tivesse ido em direção ao buraco. Não foi vertigem. Não tenho medo de altura, mas eu acho que ele que veio para baixo de mim. Eu pude sentir o asfalto sumindo de debaixo dos meus pés. Todos ficaram quietos. Mark ficou com olhar fixo para a negritude abaixo de si.
— Pode parecer loucura, mas eu concordo com Paul, pois eu acho que foi exatamente isso que aconteceu. Quando cheguei aqui e me deparei com isso aí, deixei a Bullet a uma distância muito segura. Este monstro foi até ela e a engoliu.
— Isso não é possível pessoal. O solo nas bordas deve estar mais frágil, só isso. — Disse
John.
Mal John terminou a frase, sentiu o empuxo na corda que segurava às mãos. Mark tinha se lançado para dentro da escuridão do buraco. Paul, ainda caído à margem se esticou todo para ver Mark descer, mas a escuridão era tão grande que a corda sumia a apenas alguns centímetros para baixo do nível da entrada.
— Não dá pra ver nada daqui. — Disse Paul para John. — Você tá vendo ele?
— Nada. Ele simplesmente desapareceu na escuridão. Mark! MARK! Tá tudo bem por aí?
Não obtiveram nenhuma resposta.
— Dona Milou, consegue ver algo aí de cima? — Perguntou John.
— Nada. Só a corda. — Respondeu Milou sem a mínima vontade de colaborar.
John, ainda segurando firmemente a corda nas mãos se agachou nas margens para ver se
conseguia ver ou ouvir algo. Mas o silêncio era total, era como se o som também se perdesse no breu.
— E agora? — Perguntou Paul.
Neste instante John se joga pra trás e cai sentado com um baque. Nas suas mãos a corda
frouxa.
— Arrebentou a corda!
Rapidamente ele puxa o restante da corda para si e olha a extremidade.
— Arrebentou nada, ele cortou! Olhe! Está perfeita. Nem uma fibrinha fora do lugar. —
Disse John consternado com o fato.
— Por quê ele cortaria? Como ele vai subir de volta? — Perguntou Paul.
— Eu não sei, mas este corte foi perfeito. Simplesmente a corda foi dividida. Num instante
o peso dele sumiu de minhas mãos e caí para trás. Sem tranco sem nada.
— Veja! A faixa! — Gritou Paul apontando para a faixa pintada no meio da rua. — Sumiu
metade! O buraco estava longe dela! Eu tenho certeza! Este negócio está aumentando! Ele quer nos engolir!
Rapidamente os dois homens se puseram de pé e pularam para uma área segura na
calçada, distante das bordas do buraco.
— Temos que chamar a polícia. Alguém tem que tirar o Mark de lá. — Disse John.
— Ah, seus incompetentes! Não conseguem nem saber o que fazer com um buraco na
rua. Deixe que eu chamo a polícia. Vou ligar para o delegado. — Disse Milou e sumiu para dentro de sua casa. John e Paul ficaram de olhos bem abertos olhando para o buraco. Tentavam perceber se ele realmente estava aumentando de tamanho.
— Vamos colocar umas pedras ao redor, se elas caírem, vamos ter certeza que está aumentando de tamanho. — Disse John se abaixando e pegando pequenas pedras que encontrava pelo chão. Paul fez o mesmo. Quando já tinham um pequeno punhado cada um, as distribuíram por toda a volta do buraco. Assim que terminaram, ouviram o barulho das portas corrediças do Bar Adega se abrindo.
O próprio Adegar as abrira e parou por um instante tentando identificar o que os outros dois
homens faziam ao lado da enorme cratera.
"Que maravilha, o bar já abriu... Estou mesmo precisando de um trago." Pensou Paul.
Adegar se aproximou de Paul e John, os cumprimentou e imediatamente perguntou o que
havia acontecido.
— Infiltração de água, com certeza. Alguma tubulação estourou e a água está levando embora o terreno que sustenta o asfalto. Temos que chamar os bombeiros para tirar o rapaz daí de dentro. — Disse Adegar depois de ouvir os relatos dos acontecimentos pelos dois outros.
— Mas não dá pra ver e ouvir absolutamente nada. Não era para pelo menos ouvirmos barulho de água? — Argumentou John.
— Depende da profundidade. Quanto mais fundo, mas difícil de ver e ouvir algo. —
Respondeu Adegar.
— E a corda? Estava ainda bem no começo da descida. Por quê ele não respondeu quando chamei? E se é tão fundo, por quê a corda foi cortada logo no início?
— Deve ter se cortado na borda. E o rapaz não respondia porquê estava com sua atenção
em encontrar a bicicleta em meio à água, terra e escuridão...
— Ainda acho que não foi nada disso. — Discordou John. — Se a corda tivesse se cortado
na borda, estaria toda desfiada e não com um acabamento preciso como este. — John mostrou a corda para Adegar que a examinou bem de perto dos olhos.
— Isso é mesmo estranho. Não estaria já cortada? Digo, com um incisão parcial por algum
motivo? — Perguntou Adegar.
— Tenho certeza que não. — Respondeu prontamente Paul. — Eu a usei este fim de semana mesmo, para... é... ajudar minha esposa... E eu mesmo a enrolei e guardei. Estava em perfeitas condições.
— Muito estranho mesmo... — Disse Adegar pensativo, passando os dedos por debaixo do
queixo, na barba por fazer.
— Olhem! As pedras! Sumiram! — Gritou Paul.
— Tá aumentando!
Neste momento, Milou reapareceu na janela.
— Agora a turma está completa! Os três patetas aí podem se recolher às suas insignificâncias, o delegado já está a caminho para acabar de vez com esta confusão. — A mulher nunca fez o mínimo esforço para esconder seu desgosto por seja lá quem fosse.
— Bom dia para a senhora também. — Disse Adegar sarcástico.
Milou apenas virou o rosto para o outro lado e resmungou algo inaudível.
— O negócio pode ficar bem feio se estiver mesmo aumentando. Pode prejudicar as casas. Não é possível que não tenha nada que indique a causa disso aqui. — Disse Adegar se abaixando e apoiando as duas mãos na borda do buraco.
— Cuidado, eu não teria tanta confiança nestas margens. — Disse John.
— Muito bem! Faça isso e logo teremos dois engolidos. — Tagarelou Milou.
Os três homens tomaram uma distância segura e se puseram a chamar mais vezes por Mark e atirar toda sorte de objetos dentro do buraco na esperança de que ao menos um som ou um gemido de Mark fosse ouvido. Mas só o que obtiveram foi uma profunda ausência de som.
— Sabem o que isso me parece? — Perguntou John para os outros dois. — Isso me parece o nada.
Adegar e Paul trocaram olhares, um tentando ver se o outro estava entendendo o que John estava falando. Aparentemente nenhum dos dois entendeu.
— Como assim o nada?
— Calma, não estou ficando louco. É que eu gosto deste tipo de assunto, ou melhor dizendo, gosto de filosofar sobre as coisas que não entendo ou que não tenho conhecimento.
Gosto de criar em minha mente as resposta possíveis sobre alguns enigmas.
— E este buraco é um enigma? Para mim é apenas um buraco. — Disse Adegar.
— Claro que é um enigma, vejam só: não reflete a luz em nenhum ponto, nenhum som sai dele, suas bordas, pelo que pudemos observar até agora, parecem se expandir vagarosamente e sem motivo aparente. Não é como um buraco gerado por uma erosão. Ele simplesmente se expande, sem nenhum aviso, sem vermos nenhum pequeno pedaço do chão se desprender. Nada que condiga com o que conhecemos. Portanto, a existência deste buraco é um enigma.
Adegar fez cara de quem não ligava para o assunto se virou para Paul e disse:
— Tudo isso para mim é um pouco demais... acho que preciso de um trago. O que você
acha?
Era muito óbvia a resposta que iria obter de Paul. Este não passava um dia sequer sem tomar uns tragos no Adega. Adegar, como um bom dono de bar, se mantinha distante das bebidas - não que tivesse algum histórico de alcoolismo, mas não era bom para os negócios se meter com a bebida. Mas não era do tipo intelectual, muito menos letrado. Sabia que o fenômeno que acabara de presenciar era algo diferente, mas sua mente preferiu ignorar ao ir mais à fundo, diferentemente de John, o qual era um curioso patológico e que apesar de ser um simples comerciante como Adegar, nunca deixava de fazer uma pesquisa sobre um novo assunto que encontrava.
— Achei que até demorou para oferecer! — Disse Paul com um largo sorriso. Num instante, todos os problemas de sua vida foram eliminados. Nada como um trago para se anestesiar de suas mazelas.
Os dois homens saíram lado a lado em direção ao bar da esquina, deixando John com alguns curiosos que começavam a cercar o misterioso buraco. Este ficou olhando para a negritude crescente e tentando imaginar o que fazer a seguir. Resolveu ir até sua mercearia e pegar algo que pudesse usar como faixa de isolamento - a manhã já ia alta e algumas crianças já circulavam por ali demonstrando curiosidade - ele não queria que mais ninguém caísse dentro do buraco, ou dentro do nada, como agora resolveu chama-lo em seus pensamentos. Antes de sair de perto do buraco, se certificou de que algumas outras pessoas que estavam observando o fenômeno cuidassem de avisar para quem chegasse sobre o perigo de ficar muito próximo.
E assim John fez o que planejava. Foi até a mercearia, pegou algumas embalagens plásticas vazias, postes de placas de promoções e sinalização de produtos, explicou a situação para sua esposa, Martha - a qual já estava no caixa atendendo a alguns fregueses, disse que assim que uma autoridade competente chegasse, iria para junto dela ajudar com os deveres do negócio.
Com o material em mãos, abriu as embalagens plásticas e as uniu para que formassem uma corda que passou por todos os pequenos postes que havia arranjado, formando uma área de segurança ao redor do buraco. Deu uma boa distância das margens, pois achava que se a tendência continuasse, logo o buraco engoliria a proteção. Os curiosos iam e vinham. Todos com uma boa teoria sobre a origem e os motivos do buraco. Alguns chamavam por Mark e até juravam que quase ouviram ou viram algo, mas sempre o silêncio e escuridão os convenciam de que nada mais havia para se ver ali. Ao final da manhã, uma viatura policial parou próximo à casa de Milou e Paul Gartia, quase encostando na proteção que John havia feito. O carro já devia ter mais de quinze anos de uso, mas sua aparência era impecável. Se o modelo já não fosse tão antigo, seria fácil achar que acabara de sair de uma concessionária de carros novos. Assim sendo, todos sabiam quem havia chegado - o delegado Marvin Blossom. Todos na cidade de Black Rocks conheciam suas manias obsessivas por limpeza, arrumação e mais alguns outros TOCs e trejeitos. O homem já era uma figura folclórica. Mas era também reconhecido por sua competência. Muitos achavam que conseguia ser tão objetivo e persistente devido às suas obsessões. Ele não conseguia seguir emfrente se algum detalhe do que estava investigando ficasse para trás. Simplesmente não dormiria.
Sua vida se transformaria em um inferno. Repassaria o caso milhares de vezes em sua cabeça até que conseguisse uma definição estável, ou no caso dele, confortável mentalmente falando, calando as vozes que o faziam ficar focado no assunto.
Ao descer do carro, o delegado Blossom mostrou que o mesmo zelo que tinha com a limpeza e conservação da sua viatura tinha com sua farda e sua aparência pessoal. Sua farda era impecável, sua plaqueta de identificação brilhava como nova, o vinco de sua camisa perfeitamente delineado, os botões de metal todos polidos, a gola, os bolsos de sua calça, a fivela do cinto, o brilho do sapato e até o nó do cadarço eram exaustivamente checados e arrumados até que ficassem perfeitos. O cabelo fixado com gel não tinha nem sequer um fio fora de posição, a barba, feita com atenção, não deixava um único pelo solitário aparecer em seu rosto. Os dentes perfeitamente alinhados e limpos em um ritual incansável de escovação e fio dental após cada simples refeição. O delegado Blossom sempre gostava de mostra-los ao conversar. Sentia orgulho de sua aparência apesar de consumir muito do seu tempo para deixar do modo que considerava perfeito.
Olhou ao seu redor para avaliar a área, viu o buraco, olhou para Milou - que estava ainda na janela observando a tudo e a todos - sorriu para a mulher e fez seus trejeitos característicos - os quais às vezes eram imitados pelos engraçadinhos à suas costas - passou a mão esquerda pelo vinco direito de sua camisa, olhou para suas unhas da mão direita, olhou para o sapato direito e ergueu as sobrancelhas.
— Finalmente delegado! Veja só o que me apareceu aqui! — Disse Milou assim que o delegado se aproximou.
— São exatamente onze horas e trinta e seis minutos desta manhã de quarta feira.
Estamos com vinte e sete graus no momento, o Sol está alto e com poucas nuvens, creio que posso agora dizer que é um bom dia Sra. Gartia Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
O modo peculiar de se expressar do delegado já era tratado com naturalidade pelos moradores de Black Rocks, apenas mais uma excentricidade do homem.
— Seria um bom dia se eu ao menos pudesse ter comido meus pães de manhã. Mas o incompetente do entregador da padaria conseguiu a proeza de derruba-los dentro deste buraco. Esse negócio não pára de aumentar, logo vai acabar prejudicando minha casa. O senhor tem que tomar alguma providência. Isso não pode ficar assim. Uma senhora como eu, com dificuldade de locomoção e muitas outras dificuldades na vida não pode ficar sem seus pães no café da manhã!
- O senhor não concorda?
— Concordo baseado nas informações das quais sou portador - devido ao meu ofício áureo de orientar e proteger o cidadão. As informações que tenho sobre a primeira alimentação matutina é de que devem ser feitas logo após a pessoa acordar, com uma balanceada quantidade de nutrientes, com uma maior ênfase em carboidratos de boa qualidade para que o indivíduo tenha uma boa quantidade de energia para sua tarefas diárias. — Respondeu o delegado. Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
— Mudando o foco do nosso assunto que se iniciou quarenta segundos atrás, eu de fato notei a grande dissolução de continuidade do solo em frente à sua residência. — Prosseguiu o delegado. — A área de segurança que foi delimitada de forma improvisada, apesar de inadequada, está efetivamente ajudando em manter os cidadãos a uma distância compatível com a manutenção de sua integridade física. Após uma análise técnica sobre o fato que aqui se apresenta, chego a uma meta de ação: irei até minha viatura, a qual está localizada a cinco metros de onde estou neste exato momento, alcançarei meu aparelho de rádio que fica na região central do console e com a autoridade a mim conferida, devido ao meu cargo e posição de liderança e exemplo ao qual me encaixo nesta sociedade, comunicarei à Central que se faz necessário uma viatura de perícia da prefeitura para que as devidas providências de âmbito estrutural possam ser devidamente tomadas pelo órgão público competente. Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas. — Finalmente um homem de ação! — Sorriu Milou orgulhosa por ter consertado a situação. Com o delegado assumindo o curso de ação a respeito do incidente, a mulher poderia relaxar e cuidar sossegadamente da vida alheia. Já se podia ver dando ordens aos homens que viriam para consertar os estragos do buraco. Teria pelo menos mais de um dia de diversão.
O delegado se empertigou com o elogio e estufou o peito. Mais uma vez sua perspicácia fora reconhecida. Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
Do outro lado da rua, dentro da mercearia “Tá na Mão”, John observava o delegado Blossom e Milou conversando. Tinha ainda muito o que fazer em seu estabelecimento, mas queria saber do delegado quais providências seriam tomadas referente ao sumiço de Mark. Ele estava preocupado com o rapaz, pois já fazia algumas horas que estava desaparecido. Deixou mais uma vez seus afazeres com a esposa, a qual estava começando a não gostar nada da sua constante ausência na mercearia, e foi em direção à casa de Milou.
— Bom dia delegado Blossom! Que bom o senhor ter vindo! Estou muito preocupado com o entregador que sumiu aí dentro. — Disse John assim que se aproximou do delegado. O delegado ficou rígido como se estivesse em forma na frente de um superior. Virou energicamente o rosto para olhar Milou e fez o mesmo em seguida de volta para John. Queria saber se seus interlocutores estavam trocando olhares. Milou olhava impassivelmente para as pessoas que transitavam na calçada oposta como se nada tivesse acontecido nem se tinha ouvido alguém falar de um assunto que lhe dizia respeito. John logo entendera o porquê do delegado ter tido tal sobressalto. Milou nem sequer tinha dito que alguém estava dentro do buraco.
— Acabo de detectar uma incongruência nos relatos dos fatos. — Disse o delegado Blossom. — O senhor está me relatando um novo detalhe digno de suma atenção. Uma pessoa
está dentro deste buraco?
— Está. É Mark o nome do rapaz. Ele faz entregas para a padaria da esquina.
— Ele caiu no buraco?
— Ele entrou por vontade própria. A bicicleta dele tinha caído primeiro no buraco. Caído,
não, o buraco a alcançou enquanto ela estava apoiada no descanso. — John relatava os fatos de
forma exaltada. — Depois quase alcançou Paul Gartia, que estava na borda ao meu lado, ele
alcançou as pedras que colocamos em suas margens para saber se estava aumentando de
tamanho. Este monstro cortou a corda que Mark usou para descer. Este negócio está vivo
delegado Blossom!
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
— Este monstro engoliu Mark!
— Pare! — O delegado Blossom tinha o braço direito esticado à frente do corpo apontando
para John com a mão espalmada. Estava rígido como um poste e com a expressão séria. —
Devido à natureza incomum dos fatos que acaba de me relatar, faz-se necessário que eu faça um relatório detalhado. — Abaixou o braço, assim que obteve o silêncio de John. — Tenho que repetir uma pergunta crucial que já fiz, mas advirto que necessito de uma resposta de caráter estritamente objetivo. Está pronto?
John mesmo já conhecendo o delegado Blossom, não conseguiu deixar de achar peculiar seu modo de falar e de agir. Apenas concordou com a cabeça.
— Fazendo a leitura corporal do seu movimento de cabeça concluo que sua assertiva foi
de que está pronto para ouvir a pergunta que tenho a lhe fazer. Pois bem…
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
… vou fazer a pergunta. A resposta deverá ser no formato de negação ou afirmação.
Apenas as palavras “sim” ou “não” poderão ser usadas.
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
— Tem uma pessoa dentro do buraco?
— Sim.
O delegado olhou para Milou que o encarou. Depois voltou o olhar para John e depois finalmente para o buraco. Marchou em direção à faixa de proteção improvisada e pela primeira vez olhou para dentro do buraco a uma curta distância. Ficou perfeitamente estático observando a negritude. Não tinha nenhuma expressão no rosto. Ficou assim por quase um minuto. De repente, em um movimento rápido, se virou noventa graus e marchou em passadas rápidas até a viatura. John e Milou permaneceram onde estavam, apenas acompanhando os movimentos do delegado. Conseguiam vê-lo usando o rádio. Momentos depois, marchou de volta de encontro aos dois.
— Devido à gravidade da situação, onde temos um cidadão com suas condições físicas desconhecidas no interior do buraco que aqui surgiu, tomei a decisão emergencial de acionar o Resgate do Corpo de Bombeiros da Cidade de Black Rocks. Em breve estarão aqui. Devido ao extenso treinamento e experiência deste grupo, tenho como uma decisão segura o que fiz, agora esta pessoa no interior do buraco terá maiores chances de salvamento. — Blossom fez uma pequena pausa. — Apesar do curto tempo que tive para analisar friamente a situação, pude chegar à algumas conclusões preliminares sobre os fatos que até o momento me foram relatados.
Primeiro, a senhora Gartia ocultou o fato de haver uma pessoa dentro do buraco. Isso é uma infração de nível gravíssimo, passível de detenção para interrogatório e posterior abertura de inquérito policial, lembrando ainda que as condições físicas da vítima e o tempo que foi desperdiçado devido à ocultação do fato terão grande peso em seu julgamento.
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
— No entanto, sou um agente da lei que leva muito a sério as relações humanas. — Continuou Blossom. — Para melhor lidar com meus semelhantes, fiz diversos cursos de
psicologia e comportamento humano. Com as informações que tenho, tanto dos fatos como meus conhecimentos adquiridos nos cursos, pude analisar as ações, ou falta delas, da Sra. Gartia. A conclusão que cheguei foi de que a Sra. Gartia estava com o estado mental alterado pela falta de nutrientes essenciais para o bom funcionamento de seus tecidos cerebrais. Ela havia me relatado, assim que cheguei, que estava ainda sem sua primeira refeição do dia, isso provavelmente causou uma grande depleção glicêmica em seu organismo. Em algumas pessoas, a função cerebral fica profundamente afetada, causando até amnésia de fatos recentes. Portanto, decidi levar isso em conta e relevar a omissão do fato. A Sra. Gartia é tão vítima quanto o rapaz que está no interior do buraco.
— Oh, o senhor é tão sábio, delegado Blossom… Somente um homem de verdade como o
senhor poderia saber o que uma senhora sofredora e reprimida como eu tem que enfrentar na vida. As dificuldades são tantas… — Disse Milou com uma voz chorosa e com uma grande carga dramática.
“Essa mulher é mais falsa que uma cédula de 17 pratas! ” — Pensou John indignado.
Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas.
— Segundo… — Continuou Blossom impassível mesmo com as lisonjas de Milou. — … o que o Sr. Smith me relatou tem uma carga de detalhes de natureza improvável. Mais uma vez os conhecimentos de psicologia que possuo me ajudaram a traçar seu perfil psicológico. Suas faculdades mentais estão seriamente afetadas. Detectei uma falta de equilíbrio de idéias e uma grande falta de conexão com a realidade. Um certo grau de alucinação também foi detectado. A melhor ação neste caso é a descontinuação de sua vida em sociedade para que possa se reabilitar. Seu convívio com outras pessoas é uma ameaça ao bem estar e segurança. Pessoas com tendências à alucinações podem ter ações muito nocivas. O senhor será encaminhado até a Central de Polícia para que o psiquiatra forense possa avaliar suas capacidades cognitivas e gerar um relatório mais preciso sobre as condutas necessárias.
— O senhor está dizendo que estou louco, é isso? — Disse John exaltado e indignado.
— Mentalmente instável é o termo correto. — Respondeu o delegado Blossom, impassível.
— E quer me levar preso? — Perguntou John ainda mais exaltado.
— Detido temporariamente para uma avaliação psicológica.
— Isso é uma baboseira enorme! Não foi só eu que vi tudo o que te falei! A Dona Milou
estava aí o tempo todo! Ela pode confirmar tudo o que eu disse!
O delegado Blossom e John agora olhavam para Milou esperando que ela se
manifestasse. Milou deu de ombros.
— Sinto muito senhor delegado. Eu não sei do que este homem está falando. — Disse Milou com cara de inocência.
John não acreditava no que acabara de ouvir. Não era possível que aquela mulher pudesse ser tão cruel e mal intencionada. Não teve sequer forças para respondê-la. Pelo que conhecia de suas condutas, caso ele se exaltasse e a confrontasse com palavras, ela se faria de vítima, devido à idade, condições físicas e mais algumas coisas que inventaria a seu favor. O delegado Blossom se virou para John novamente.
— O senhor tem que acreditar em mim delegado. Tudo o que eu lhe disse é verdade. Eu não sei a razão desta mulher estar mentindo dessa forma, mas eu não estava sozinho - o próprio marido dela estava comigo o tempo todo - Paul Gartia. Ele viu tudo e pode confirmar minha história. Além do mais, quando Mark for resgatado, ele próprio poderá confirmar minhas palavras.
— Pela falta de antecedentes criminais ou queixas contra a sua pessoa, posso fazer a concessão de ouvir o Sr. Paul Gartia. Onde ele se encontra? — Disse Blossom. John olhou em direção ao Bar Adega, mas não pode ver se Paul estava por lá.
— Ele foi para o bar. Um minutinho e o trago até aqui. — Disse John e partiu a passos rápidos em direção ao Adega. Isso fez com o delegado se pusesse em posição de ataque e com as duas mãos sobre seu coldre esquerdo gritou para John:
— Alto lá! O senhor está temporariamente impedido de ter livre transito pela minha jurisdição! O senhor representa uma ameaça à sociedade! Pare imediatamente!
John ignorou o grito do delegado e prosseguiu em direção ao bar. Estava decidido a resolver este impasse de uma vez. No momento seguinte, John estava caído no chão estrebuchando como um salmão que acabara de ser retirado do rio. Babava e revirava os olhos se contorcendo em tetania, com todos os músculos do corpo retesados. Imediatamente Milou teve certeza que aquele seria um dos dias mais divertidos de sua vida. O delegado Blossom se aproximou de John assim que seus espasmos pararam. Tinha a pistola de choque na mãe direita com os fios que a unia com os eletrodos presos às roupas de John pendendo até o chão.
— Devido à sua fuga iminente, o senhor foi detido por uma descarga elétrica de 100.000 volts, desferida pela minha pistola de eletrochoque. Esta descarga provocou a disrupção do controle voluntário dos seus músculos causando sua incapacitação neuromuscular, o impedindo,portanto, de se mover. Caso o senhor ainda insista na fuga, uma nova carga será disparada pelo simples toque no gatilho de minha arma. Tem o direito de permanecer calado, devido à tentativa de fuga, cometeu o delito de desobedecer a ordem de um Oficial da Lei, sendo agora detido em flagrante. O senhor compreendeu? John não compreendeu. Ainda estava tentando saber por quê seu corpo todo doía como se tivesse sido atingido por uma onda de cãibras. Sua cabeça estava zumbindo, tinha a respiração acelerada e começava a suar profusamente.
Com o berro que John deu ao ser atingido pelos eletrodos da arma do delegado, Adegar e Paul saíram à porta do bar para verem o que estava acontecendo. Acharam que mais alguém tinha despencado buraco adentro. Ao verem John caído ao chão se contorcendo e o delegado com a pistola na mão, que daquela distância parecia uma pistola convencional, pensaram no pior - o delegado acabara de atirar em John. Ficaram congelados em seus lugares, assim como as pessoas que assistiram a cena. A única pessoa que havia acompanhado a cena de perto e sabia exatamente o que tinha se passado era Milou, a qual conservava um sorriso de canto de boca de deleite com a desgraça alheia.
— John! John! Ah meu Deus! O quê aconteceu? Por quê atirou nele? — Martha Smith, a esposa de John, apareceu correndo em direção ao seu marido caído, dirigindo a pergunta ao delegado que permanecia impassível com a pistola na mão. Ela fez menção de se agachar ao lado de seu marido, quando foi repelida verbalmente pelo delegado Blossom.
— Alto lá! Não se aproxime! Este indivíduo ainda está conectado à minha arma de eletrochoque, caso eu necessite aplicar outra descarga e a senhora estiver em contato com o seu corpo, poderá sofrer os efeitos da corrente elétrica também.
— Vá à merda! Ficou maluco de vez? Seu bizarro paranóico esquizofrênico! Se apertar esta merda de novo eu acabo com você! — Disse aos berros Martha Smith enquanto se abaixava ao lado do marido ignorando as ordens de Blossom. Ela sempre achou os trejeitos e os modos de ação do delegado de Black Rocks um tanto afetados demais, mas nunca teve motivos para duvidar de sua sanidade mental, com o que acabara de presenciar, teve certeza que algo não estava certo com aquele homem, e como não era uma mulher de aceitar injustiça calada e de cabeça baixa, tratou logo de externar toda a sua indignação.
O delegado Blossom ficou sem ação. Apenas uma mulher tinha sido tão efusiva com ele. Imediatamente a imagem de sua mãe veio à sua cabeça e as lembranças de sua infância sob o crivo educacional e comportamental dela nublaram seus pensamentos. Imediatamente começou à afasta-los e usar toda a razão que o tornava tão confortável consigo mesmo. Nada de emoções. Apenas a razão e a disciplina para guiar suas ações.
— Vou considerar sua atitude de ofensa para com um Oficial da Lei como sua manifestação descontrolada de emoções frente à detenção de seu cônjuge. Tenho que adverti-la que qualquer nova ofensa será levada em consideração e poderá ser indiciada como cúmplice.
Martha ignorou a última frase do delegado e continuou ao lado de John que tinha começado a recobrar a consciência e os movimentos. Mesmo que tivesse a mínima vontade de fugir, ou seja lá o quê o delegado poderia achar que poderia fazer, John não conseguiria. O corpo todo latejava e formigava devido à descarga elétrica. Adegar e Paul se aproximaram do pequeno tumulto que se formou ao redor de John, que com Martha ao seu lado, ainda permanecia no chão conectado à arma do delegado Blossom.
Estavam praticamente do outro lado da rua e Milou já não conseguia ouvir o que todos falavam e para ela era inconcebível ficar sem saber o que estava acontecendo bem em frente à sua casa.Se esticou, virou a orelha em direção às pessoas, fez uma concha com as mãos e nada de ouvir uma só palavra. Podia ver que Martha e o delegado discutiam, viu que seu marido e o dono do bar se aproximaram trançando as pernas, mas não ouvia nada. Isso a estava consumindo, tirando o seu fôlego. Não podia ficar sem participar. Ela decidiu que iria até lá. Iria arrastar seu corpanzil até onde estava a ação mais interessante dos últimos anos.
Para aumentar ainda mais seu ímpeto de ir até o tumulto, acabava de chegar a viatura de resgate dos bombeiros e dois homens desceram correndo carregando cordas e uma maca. Milou não poderia perder mais tempo. Levantou-se e partiu em direção à porta da rua. Nas escadas os degraus de madeira estalavam e crepitavam sob o seus pesados passos. Um a um, conseguiu vencê-los e chegou à calçada. Estava tão focada em chegar ao tumulto que esqueceu que havia um enorme buraco bem à sua frente, e enquanto de esforçava para contorna-lo não pode perceber que ele começou a modificar sua forma. Um prolongamento se suas margens começou a se formar na direção de Milou. Ninguém estava vendo Milou se aproximar e ninguém também via que aquele monstro negro estava se movendo. Quando o buraco alcançou-a, simplesmente a gorda senhora deu um passo para dentro da negritude silenciosa do buraco. Sumiu, assim como a bicicleta, Mark, as pedrinhas e tudo o mais que caía na densa escuridão. Ninguém viu. Ninguém percebeu o que tinha acontecido. Toda a atenção era para o homem ao chão.
Os homens do resgate chegaram e prontamente se abaixaram ao lado de John, achando obviamente que ele era o motivo de terem sido chamados. Mas mesmo antes de que alguém pudesse esclarecer o que estava acontecendo para os homens, John começou a rir descontroladamente. Ele estava deitado com a cabeça virada para o lado do buraco. E todos olharam para ver o que o homem que até alguns momentos antes se contorcia de dor estava vendo e achando graça.
— Rá rá rá, quero ver agora delegado Blossom! Olhe ali! O buraco sumiu! Como o senhor vai encarar isso? Mais uma loucura minha? Rá rá rá! Engole essa delegado! Rá rá rá! Ninguém entendeu o que tinha acontecido. De uma hora para outra o imenso buraco simplesmente desapareceu. Deixando para trás apenas a delimitação do perímetro improvisada por John. O asfalto estava perfeito novamente. O silêncio era total. Ninguém disse nada. Os dois homens do resgate nada estavam entendendo, estavam preocupados em tirar os eletrodos das roupas de John e checar seus sinais vitais.
Ao longe começaram a ouvir o som de correntes e catraca de uma bicicleta. Era Mark com sua Bullet. Veio sem pedalar, apenas no embalo. Ao chegar, era claro que também não estava entendendo o que estava acontecendo.
— Poxa… bem hoje que perdi a hora acontece algo de interessante por aqui… — Disse Mark olhando para todos ao redor.
O delegado Blossom deixou a pistola cair de sua mão. Vinco - unhas - sapato - sobrancelhas. No dia seguinte pediu afastamento do emprego por seis meses para tratamento psiquiátrico.
O desaparecimento de Milou foi assunto para alguns minutos de prosa e só. Paul Gartia nunca mais colocou uma gota de álcool em sua boca. Mark foi advertido por ter se atrasado nas entregas e não se lembra de ter ido trabalhar naquela manhã e nem de ter existido um buraco em sua vida. Apenas achava que tinha ficado dormindo. Talvez fosse sonâmbulo, pensou. Continua fazendo as entregas em sua Bullet. Black Rocks, uma cidadezinha no meio do nada onde acontece de tudo.

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